Sabores que nos definem: porque é que a comida se liga às nossas emoções

16 Dezembro, 2025
Inspiracao

As experiências diárias são aquelas que nos moldam e que, no fim, se enraízam na memória de forma subtil, mas duradoura. Se fosse feita uma sondagem espontânea sobre memórias passadas e presentes, seria quase impossível não encontrar alguém que evocasse emoções através da comida. Isto acontece porque as receitas são muito mais do que ingredientes cortados em juliana. A comida está profundamente ligada às emoções, tornando cada um, muitas vezes sem se aperceber, protagonista dessas vivências.

Criamos memórias quando cuidamos de alguém preparando uma boa sopa, quando encontramos conforto em casa com uma receita ou um assado da mãe, do pai ou da avó. Até aquele desastre de omelete colada à frigideira, feita para impressionar amigos no primeiro apartamento arrendado, cria uma memória. Tudo isto vai para lá de uma simples receita. Faz parte daquilo que define cada pessoa, desses sabores eternos que ajudaram a construir quem somos hoje. Mas porque é que todos temos um prato que nos transporta para a infância? Porque é que a comida constrói a nossa memória emocional? Vamos analisar:

O passado: a comida como primeiro território emocional

As cozinhas da nossa infância, especialmente nas culturas mediterrânicas, raramente eram espaços tranquilos, exceto quando a avó se dedicava a fazer rissóis intermináveis, um dos pratos que mais tempo e amor exige. As cozinhas estavam cheias de ruído, de gente, de vozes levantadas e de uma mistura de aromas a refogado, bolo, stress, desordem e utensílios a bater aos domingos. Seguiam-se mesas postas, o clássico “come mais um bocadinho” e longas sobremesas que quase se confundiam com o jantar. Também havia discussões e momentos intensos: muitas vezes essas reuniões familiares eram o palco para comunicar acontecimentos importantes. Por vezes, até se chorava, de alegria, de tristeza ou de tudo ao mesmo tempo.

Existe, de facto, uma relação direta entre comida e memória autobiográfica. A comida constrói a identidade de forma individual e coletiva. Diversos estudos indicam que gera memórias pessoais e emocionais intensas quando é provada ou até quando é vista, mesmo sem consciência disso.

Em muitos casos, desenvolve-se uma relação complexa com a comida, associada ao afeto, ao cuidado, ao sentimento de pertença e à proteção. Nem sempre ligada aos alimentos mais saudáveis, convém dizê-lo. Ainda assim, da próxima vez que alguém comer um cozido ou uma fatia de pizza congelada, talvez estabeleça ligações a outros níveis, não apenas individualmente, mas também entre gerações, criando pontes com o passado e com as próprias origens.

Receitas que constroem e alimentam a memória coletiva

Esta ligação entre emoções e comida não acontece apenas a nível individual. Muitos pratos surgiram em contextos traumáticos, como guerras, utilizando os ingredientes básicos disponíveis na altura, criando uma memória coletiva. Muitos dos estufados que hoje fazem parte da tradição gastronómica baseiam-se em água, farinha, batatas e ovos.

Receitas como as açordas ou favas com chouriço nasceram para serem partilhadas feitas com os poucos ingredientes disponíveis. Já o budae jjigae coreano, uma sopa típica, nasceu a partir das sobras das bases militares durante a Guerra da Coreia.

A ciência por detrás do sabor e da memória

Muitas pessoas já se questionaram sobre o facto de certos pratos lhes evocarem memórias e as transportarem para momentos e lugares específicos. Ou como, depois de um excesso alimentar como um empanturramento de um determinado doce, se pode passar anos sem conseguir voltar a prová-lo. A explicação científica passa pelo hipocampo, uma zona do cérebro responsável pela produção e pela regulação das emoções, diretamente ligada às experiências alimentares. Até a Natur menciona isso, é algo impressionante.

Está comprovado que as memórias evocadas pela comida do passado continuam a provocar respostas emocionais no presente.

O presente: cozinhar como forma de união

Cozinhar é um ato de amor. Por si próprio e pelos outros…porque sabe que vai proporcionar prazer (a menos que seu objetivo seja outro). Tudo ganha outro significado quando se partilha uma refeição. A cozinha tornou-se um espaço de encontro, onde se têm conversas triviais e outras fundamentais, enquanto se cozinha ou se bebe um café encostado à bancada. À mesa comunicam-se coisas importantes, partilham-se momentos, fortalecem-se laços e cria-se intimidade. A refeição é também um pretexto perfeito para celebrar o que de bom acontece e o que ainda está para vir.

Um estudo realizado em Taiwan com 461 famílias concluiu que cozinhar e comer em família reforça o bem-estar, os vínculos, a coesão familiar e a comunicação. Embora as discussões façam parte de qualquer mesa, estas refeições criam mais oportunidades para comunicar e aprender a fazê-lo. De facto, as refeições em família exigem um enorme esforço emocional. Além disso, estão associadas a hábitos alimentares mais saudáveis e a uma melhor saúde mental, ainda que por vezes não pareça.

Recordações à distância: comida que encurta fronteiras

Quando se está longe de casa, sobretudo em contextos de emigração, a nostalgia intensifica-se. E mesmo que não tenhamos dado muita atenção aos pastéis de nata em casa, de repente, surge uma vontade irresistível de comer meia dúzia deles. Será que é apenas uma vontade passageira? Bem, se leu até aqui, provavelmente já adivinhou que não. Não se trata apenas de um desejo súbito, mas da procura de segurança, de pertença, e das emoções ligadas aos sabores e aromas da terra natal. Essas experiências podem gerar saudade, mas também força, alegria e motivação.

Sabia mesmo assim tão bem?

Tal como acontece com muitas memórias, os sabores do passado podem ser idealizados. Tal como filmes antigos ou músicas que já não soam da mesma forma, a comida também pode ser reinterpretada pelo tempo. Ainda assim, há coisas que não precisam de ser analisadas em excesso: certos sabores confortam simplesmente, sem necessidade de explicação.

Encontrar um produto do país de origem num país estrangeiro pode ser uma recompensa emocional duradoura, mesmo que o sabor não seja exatamente igual. Italianos a comer pizza fora de Itália ou portugueses a provar bacalhau longe de Portugal entendem bem esta ligação entre comida imperfeita e emoções profundas.

O futuro: os sabores que se herdam

As receitas criam história e continuidade. Passam de geração em geração, mantêm-se, transformam-se e reinventam-se, carregando o selo emocional de “receita da avó”. Preservar esse legado é uma das formas mais genuínas de interpretar, conhecer e compreender a história da humanidade.

Mas não falamos apenas das receitas em si: o ritual de sentar à mesa para partilhar uma refeição fortalece os laços familiares e de amizade, faz com que as gerações mais velhas se sintam mais presentes e ligadas a nós e cultiva o afeto nos mais novos. É uma forma de cuidar dos outros e de nós próprios, abraçando os aspetos positivos da convivência em sociedade.

A cozinha é uma arte em constante evolução, não só para os grandes chefs, mas também para todos os que vestem o avental e participam num dos rituais mais antigos do mundo. Porque a comida caminha lado a lado com as emoções. Porque cozinhar, partilhar a mesa e comer juntos é uma linguagem universal, uma forma de amor sem palavras que todos compreendem.